🌸 Sou Flor de Cerejeira
(Carta-pétala que caiu do galho da alma)
Observei meu quintal.
Depois do inverno, não pude cuidar das flores como antes —
meus passos se desviaram do jardim,
minhas mãos perderam o compasso da terra,
e a doença, como vento brusco,
me arrancou dos pequenos rituais que me mantinham em flor.
Mas então chegou a primavera…
e as flores — fiéis ao chamado do tempo —
brotaram mesmo assim.
Algumas morreram, é verdade.
Mas outras, mesmo sem o afago da rega,
resistiram.
Se firmaram.
Floriram.
Foi então que me vi nelas.
🌸
Sou flor de cerejeira.
E há quem me olhe sem ver.
Quem leia meu silêncio e não ouse comentar.
Mas em seus textos, sem querer, falam de mim:
da flor que desperta, da alma que brilha,
do espírito que flutua acima das dores do mundo.
“Ah, despertei”, dizem.
E seguem se afastando — como se o despertar fosse leveza sem raiz,
modo flor do campo ativado,
sem saber que toda luz real já teve sua cova de sombra.
Não sabem da história por trás do meu perfume.
Nem precisam.
Mas ao menos, respeitem.
Porque o que chamo de “estado de graça”
é colheita de muito inverno.
É flor nascida de cicatriz.
🌸
Desejo que despertem, sim —
mas sem precisar atravessar 5% do que enfrentei.
Desejo que encontrem a própria estação de paz,
sem os vendavais que ainda encaro em silêncio.
Sou flor de cerejeira — e também Daimyojin.
Deusa que floresce no frio,
que acolhe borboletas e besouros de armadura:
kabuto mushi, guerreiros do verão,
kuwagata, senhores das pinças cintilantes.
Me chamam assim —
mas não me importa o título.
Importa a sombra que ofereço.
Importa a paz que semeio.
🌸
Não gosto que me pintem como vítima.
Acolho, mas não me escondo.
Raramente escrevo que luto contra um câncer —
carcinoma ductal invasivo, triplo negativo.
Nome comprido, corpo em embate.
Mas alma em voo.
Não tenho medo da morte.
Sei que viverei cem anos,
e morrerei dormindo, na minha cama quentinha.
Minhas pétalas estarão esparramadas pelo quarto,
como um último poema que o vento quis espalhar.
🌸
Se ainda quiseres me julgar, espera.
Espera até a próxima primavera.
E vê — se mesmo sem rega,
a flor ainda floresce.
Sonia Lupion Ortega Wada
Sonia Lupion Ortega Wada