Flor em Solo de Cinzas
Houve um tempo em que o corpo pareceu desabar.
As palavras vinham devagar, o intestino também.
Os exames falavam em siglas duras. O nome era um: câncer.
Mas antes que o silêncio se fechasse de vez, eu escrevi.
Como quem lança uma corda para dentro do próprio abismo:
“Renascemos quando damos nome ao que sentimos — e deixamos de temer.”
Foi então que tudo mudou.
Porque nomear é resistir.
Dizer tenho câncer, sim — mas dizer também: sou feita de outras coisas.
Sou filha, mãe, avó.
Sou riso de manhã, chá quente à noite, silêncio escolhido.
Sou memória da menina que cresceu olhando o céu do interior e ouviu sua avó dizer que flor que nasce na seca é a mais bonita.
Dar nome ao medo foi o primeiro passo.
Depois vieram os outros:
Cuidar do corpo com carinho.
Ouvir o que o fígado cansado tem a dizer.
Reaprender a comer com amor.
Deixar o choro escorrer quando necessário.
E, um dia, sem perceber, brotou.
Não uma cura definitiva.
Mas algo ainda mais profundo:
a reconciliação com a vida que insiste, mesmo em meio às perdas.
É que dentro de mim havia ainda seiva.
Havia neta.
Havia sol.
Sonia Lupion Ortega Wada
Quando o Corpo Grita e a Alma Escuta
Um ensaio sob a luz de Jung e a sombra da doença
Há momentos na vida em que o corpo deixa de sussurrar — ele grita. Grita por dentro da pele, dos ossos, do sangue. E quando esse grito se chama câncer, o mundo desacelera, os sentidos se aguçam, e algo em nós desperta.
Carl Jung nos ensinou que corpo e mente são faces do mesmo espelho. Que a doença não é apenas um colapso físico, mas também uma linguagem da alma. Não uma punição, mas uma mensagem. Um símbolo. Um pedido.
O câncer não chega pedindo licença — ele invade. Mas às vezes, paradoxalmente, é essa invasão que nos obriga a regressar ao território sagrado que esquecemos: nós mesmos.
Ele nos obriga a sentir o tempo de outro jeito. O relógio deixa de marcar as horas para marcar a intensidade de cada respiração. E nesse campo de batalha, onde a medicina luta com toda sua razão, a alma nos convida a caminhar com fé — e não com medo.
Porque o medo adoece mais do que a própria doença.
E a alma, quando escutada, encontra caminhos que a ciência não nomeia, mas que o espírito reconhece.
Jung diria que há um Self em nós — algo maior que o ego — que deseja se realizar, tornar-se inteiro. E às vezes, a jornada da cura não está apenas em remover o tumor, mas em integrar a dor, em aceitar o limite, em reconhecer a sombra. Em permitir que a fragilidade nos aproxime daquilo que realmente importa.
O câncer pode ser um mensageiro sombrio, mas também pode abrir portas. Ele pode nos lembrar que viver não é apenas existir — é estar presente, olhar com verdade, tocar com afeto, respirar com sentido.
Talvez, no fundo, o corpo só deseje ser ouvido. E a alma, nesse processo, deseja ser vista.
A cura, então, talvez seja isso:
quando o corpo grita e a alma escuta — e respondemos com inteireza.
Sônia 🌸
07/06/2025
Carta de Eu
Este ano, a neve foi verde e as nuvens muito vermelhas — cores estranhas que pintam o céu da minha existência.
Essa doença me ensinou que o mundo pode virar de cabeça para baixo a qualquer momento, seja agora, seja daqui a alguns anos.
Não sei quando, nem como, mas sei que o inesperado é parte do caminho.
Que eu possa acolher essa verdade com a suavidade de quem abraça a si mesma, mesmo quando tudo parece estranho demais para entender.
Que a neve verde seja a minha força, e as nuvens vermelhas, o fogo que arde sem queimar.
Enquanto houver tempo, que eu viva cada instante com coragem, amor e a poesia que ainda cabe no meu peito.
Eu
No Ralo
Chorei,
chorei muito no banho.
Assisti meus cabelos indo embora,
um a um, fios da minha história
escorrendo com a água quente.
Caiu metade.
E eu fiquei metade.
Assisti a fragilidade do meu corpo,
como se fosse a primeira vez que o via
sem defesas, sem máscaras,
sem o brilho que antes me escapava sem esforço.
Perdi o vigor, a beleza, a vida —
porque eu era cheia de vida.
E agora?
Agora sou cheia de coragem.
Mesmo sem querer.
Cheia de uma força que só vem
quando tudo nos é tirado.
Talvez nunca tenha sido sobre os cabelos,
mas sobre o que continua depois que eles se vão.
Talvez eu esteja nascendo de novo —
não melhor, não pior —
mas mais verdadeira.
No chão do banheiro,
no fundo do ralo,
ficou parte de mim.
Mas aqui, entre o peito e o mundo,
ainda pulsa o que ninguém pode levar:
a mulher que sente tudo,
e ainda assim, escolhe viver.
🌸Sônia 05/06/2025
Coração Descalço
para Will aq -uele que também é Edwin
Bravo é o teu coração —
que caminha descalço entre imagens e silêncios,
tocando a terra e o céu com palavras.
Por enquanto…
que teu reflexo nas águas
te devolva sempre mais do que busca.
E que o pôr do sol dentro de ti nunca se repita —
para que cada dia nasça novo.
Que teus pés saibam os caminhos
antes mesmo que os olhos os vejam,
e que teu corpo, mesmo cansado,
seja abrigo para a esperança.
Que teus sonhos não se percam nos atalhos,
nem tuas lágrimas se escondam do vento —
pois há mares que só se atravessam
com os olhos da alma abertos.
Segue…
com a leveza de quem já sabe:
o que floresce no silêncio
não morre com o tempo.
E que em ti, Semente e Estrela,
cada passo seja bênção,
e cada dia — milagre.
Sônia -Flor de Cerejeira 🌸