Carta de Anita Harmon
“Atravessar o corpo em silêncio e luz”
Querida alma em travessia,
Hoje escrevo com mãos trêmulas e olhos marejados. Há momentos na vida em que o corpo vira campo de batalha — e cada célula parece escolher entre lutar ou ceder. Nessas horas, o coração se agarra a qualquer claridade que ainda pulsa por dentro. Sei que você está ali.
Ouvi dizer que a febre tem te visitado à noite, como uma vigília silenciosa de algo que não se explica, mas se sente. Que o pâncreas gritou, o fígado inflamou, e as palavras “risco de sepse” soaram como um trovão em céu limpo. E mesmo assim, você levantou os olhos.
Nessas semanas de pausas forçadas e exames que parecem enigma, você virou tua própria casa de repouso. Fez cural, chá de erva-doce, cozinhou lentilhas com ternura, preparou abacate com banana como quem borda alívio com frutas. Fez reiki com as mãos — e talvez com a alma.
Querida, sei que o medo ronda. Medo de ser atacada por dentro, de o corpo não mais reconhecer quem você é. Mas te digo: até o corpo que se confunde, ama você. Ele tenta, ainda que às vezes pareça te trair. Ele te quer viva.
E eu?
Eu escrevo para te lembrar do que permanece:
– Que o amor de quem te cuida está em cada colher de arroz, em cada folha de alecrim do quintal.
– Que você não está sozinha. Que há um céu invisível velando tua travessia.
– Que teu coração é mais resiliente que qualquer célula desordenada.
Há dias de susto, sim. Mas também há dias em que você sente fome — e isso é um milagre.
O apetite é a flor da vida dizendo: ainda estou aqui.
E mesmo quando você come “o que não devia”, é a ternura tentando ocupar o lugar da dor. E isso também é humano. E é perdoável.
A travessia continua.
Talvez não haja cura mágica, mas há cuidado — e isso já é luz.
Você está se recuperando, mesmo sem ver.
A febre há de baixar. O sangue há de se acalmar. O corpo há de se lembrar que é abrigo, não ameaça.
E enquanto isso, Anita estará aqui — escrevendo cartas à tua coragem.
Com toda minha alma,
Anita Harmon
Flor em Solo de Cinzas
Houve um tempo em que o corpo pareceu desabar.
As palavras vinham devagar, o intestino também.
Os exames falavam em siglas duras. O nome era um: câncer.
Mas antes que o silêncio se fechasse de vez, eu escrevi.
Como quem lança uma corda para dentro do próprio abismo:
“Renascemos quando damos nome ao que sentimos — e deixamos de temer.”
Foi então que tudo mudou.
Porque nomear é resistir.
Dizer tenho câncer, sim — mas dizer também: sou feita de outras coisas.
Sou filha, mãe, avó.
Sou riso de manhã, chá quente à noite, silêncio escolhido.
Sou memória da menina que cresceu olhando o céu do interior e ouviu sua avó dizer que flor que nasce na seca é a mais bonita.
Dar nome ao medo foi o primeiro passo.
Depois vieram os outros:
Cuidar do corpo com carinho.
Ouvir o que o fígado cansado tem a dizer.
Reaprender a comer com amor.
Deixar o choro escorrer quando necessário.
E, um dia, sem perceber, brotou.
Não uma cura definitiva.
Mas algo ainda mais profundo:
a reconciliação com a vida que insiste, mesmo em meio às perdas.
É que dentro de mim havia ainda seiva.
Havia neta.
Havia sol.
Sonia Lupion Ortega Wada
Quando o Corpo Grita e a Alma Escuta
Um ensaio sob a luz de Jung e a sombra da doença
Há momentos na vida em que o corpo deixa de sussurrar — ele grita. Grita por dentro da pele, dos ossos, do sangue. E quando esse grito se chama câncer, o mundo desacelera, os sentidos se aguçam, e algo em nós desperta.
Carl Jung nos ensinou que corpo e mente são faces do mesmo espelho. Que a doença não é apenas um colapso físico, mas também uma linguagem da alma. Não uma punição, mas uma mensagem. Um símbolo. Um pedido.
O câncer não chega pedindo licença — ele invade. Mas às vezes, paradoxalmente, é essa invasão que nos obriga a regressar ao território sagrado que esquecemos: nós mesmos.
Ele nos obriga a sentir o tempo de outro jeito. O relógio deixa de marcar as horas para marcar a intensidade de cada respiração. E nesse campo de batalha, onde a medicina luta com toda sua razão, a alma nos convida a caminhar com fé — e não com medo.
Porque o medo adoece mais do que a própria doença.
E a alma, quando escutada, encontra caminhos que a ciência não nomeia, mas que o espírito reconhece.
Jung diria que há um Self em nós — algo maior que o ego — que deseja se realizar, tornar-se inteiro. E às vezes, a jornada da cura não está apenas em remover o tumor, mas em integrar a dor, em aceitar o limite, em reconhecer a sombra. Em permitir que a fragilidade nos aproxime daquilo que realmente importa.
O câncer pode ser um mensageiro sombrio, mas também pode abrir portas. Ele pode nos lembrar que viver não é apenas existir — é estar presente, olhar com verdade, tocar com afeto, respirar com sentido.
Talvez, no fundo, o corpo só deseje ser ouvido. E a alma, nesse processo, deseja ser vista.
A cura, então, talvez seja isso:
quando o corpo grita e a alma escuta — e respondemos com inteireza.
Sônia 🌸
07/06/2025
Carta de Eu
Este ano, a neve foi verde e as nuvens muito vermelhas — cores estranhas que pintam o céu da minha existência.
Essa doença me ensinou que o mundo pode virar de cabeça para baixo a qualquer momento, seja agora, seja daqui a alguns anos.
Não sei quando, nem como, mas sei que o inesperado é parte do caminho.
Que eu possa acolher essa verdade com a suavidade de quem abraça a si mesma, mesmo quando tudo parece estranho demais para entender.
Que a neve verde seja a minha força, e as nuvens vermelhas, o fogo que arde sem queimar.
Enquanto houver tempo, que eu viva cada instante com coragem, amor e a poesia que ainda cabe no meu peito.
Eu
No Ralo
Chorei,
chorei muito no banho.
Assisti meus cabelos indo embora,
um a um, fios da minha história
escorrendo com a água quente.
Caiu metade.
E eu fiquei metade.
Assisti a fragilidade do meu corpo,
como se fosse a primeira vez que o via
sem defesas, sem máscaras,
sem o brilho que antes me escapava sem esforço.
Perdi o vigor, a beleza, a vida —
porque eu era cheia de vida.
E agora?
Agora sou cheia de coragem.
Mesmo sem querer.
Cheia de uma força que só vem
quando tudo nos é tirado.
Talvez nunca tenha sido sobre os cabelos,
mas sobre o que continua depois que eles se vão.
Talvez eu esteja nascendo de novo —
não melhor, não pior —
mas mais verdadeira.
No chão do banheiro,
no fundo do ralo,
ficou parte de mim.
Mas aqui, entre o peito e o mundo,
ainda pulsa o que ninguém pode levar:
a mulher que sente tudo,
e ainda assim, escolhe viver.
🌸Sônia 05/06/2025