BEM-HUMORADA CARTA DE MIKI-CHAN AO SACERDOTE
Templo no interior de Kyoto
(Terceira noite de Shugio, zero vinho, muitas tentações)
Querido Sacerdote,
Não se preocupe —
não vou me jogar aos seus pés nem confessar pecados demais.
Até porque não sei se o senhor faz esse tipo de atendimento.
Mas precisava dizer:
o senhor mexeu comigo.
Não com os chakras, nem com o karma.
Com o que está abaixo disso tudo.
(Com o que o kimono mal cobre, sabe?)
Quando entrou no salão, descalço,
com aquela calma de quem nunca perdeu um ônibus,
foi como se o próprio Buda soprasse em meu ouvido:
“Cuidado, Miki-chan, ele é iluminado… e bonito.”
Não me aguentei.
Fiz três reverências seguidas.
Acho que a última foi mais pra disfarçar o tropeço.
Na primeira cerimônia do chá,
o senhor mexia nas tigelinhas com tanta delicadeza,
que quase levantei a mão pra ser mexida também.
Mas me contive.
Afinal, sou mulher de certa idade —
embora minha idade biológica ainda use rímel e botox sem culpa.
Notei que seus olhos não me evitavam,
mas também não me procuravam.
O que só piorou minha situação:
me fez querer ser olhada com aquele mesmo olhar
que o senhor lançou ao pinheiro do jardim.
(Pinheiro esse que, convenhamos, é bonito, mas não tem cílios.)
Na última noite, quando o senhor ofereceu um docinho de feijão
com aquele gesto digno de altar,
juro que por um segundo achei que fosse um anel de noivado.
Foi só um doce, sim.
Mas por dentro, eu estava aceitando.
Enfim.
Se algum dia o senhor quiser conversar
fora do horário de zazen,
eu conheço um café lá em Nara
onde ninguém fala de iluminação.
Só de paixões discretas
e risadas de canto de boca.
Com todo o respeito (e um tantinho de desejo),
Miki-chan
ex-devota da abstinência,
recém-iniciada nos mistérios do seu sorriso.
Cartas inspiradas nas Histórias de Isa e Toshio.