CARTA DE UM SACERDOTE EM TRANSIÇÃO (OU EM TENTAÇÃO)
Enviada discretamente de Kyoto a Nara, por dentro de uma caixa de chá verde.
Miki-chan,
Confesso que reli sua carta três vezes
(duas por prazer,
e uma por penitência —
embora esta última tenha saído falha).
No templo, dizem que devemos ser como a água:
transparente, fluida, inodora.
Mas depois de ler suas palavras,
descobri que há águas que borbulham,
mesmo quando estão serenas por fora.
Sim, notei sua terceira reverência.
A primeira foi respeitosa,
a segunda, graciosa,
e a terceira…
foi um tropeço cheio de charme que me deu vontade de amparar.
Reparei no modo como ajeita o obi,
no cuidado com que dobra os joelhos no tatame,
no rímel teimoso que insiste em participar das meditações.
(Minha avó diria: “essa mulher tem alma de gueixa e fogo de maçarico.”
Perdão. Minha avó era das boas.)
É verdade: olhei o pinheiro.
Mas estava com vontade de olhar você.
Não sabia se era permitido,
ou se Buda levantaria a sobrancelha do nirvana.
No entanto, depois do seu bilhete,
pensei: se Miki-chan é capaz de tanto encanto no silêncio,
quem sabe, em Nara, com menos incenso e mais café,
possamos conversar sem o peso da iluminação.
Eu aparecerei.
Disfarçado de turista, talvez.
Ou de monge cansado da perfeição.
Só me reconheça pelos olhos.
Aqueles que não te evitaram,
mas também não te resistiram.
Com reverência (e um tanto de esperança),
Toshio
monge há 22 anos,
tentado há três noites.