Henoc: o homem que atravessou o invisível
Há figuras que não pertencem inteiramente a este mundo. Que tocam o chão com os pés, mas com os olhos acesos por um outro tipo de luz — uma que não fere, não cega, apenas chama. Henoc é assim.
Na vastidão das genealogias bíblicas, ele aparece como um sussurro entre nomes ruidosos. Apenas algumas linhas no Gênesis: “E andou Henoc com Deus, e já não era, porque Deus o tomou para si.” E basta. Não há morte, não há lamento. Apenas um desaparecer que não é ausência, mas transfiguração.
Henoc não morre — ele passa.
Dizem os livros antigos que ele viu o que nenhum homem tinha visto antes: os véus dos céus se abrindo como páginas de um livro eterno, os anjos caindo como estrelas aflitas, o trono de Deus rodeado de fogo e safira. Foi levado em nuvem e névoa, conduzido por silêncios mais eloquentes do que qualquer palavra humana.
Entre os sete céus que percorreu, Henoc viu a ordem do cosmos escrita em luz. Aprendeu que há ciclos invisíveis governando as marés do tempo e que o universo tem um coração — e esse coração pulsa por justiça.
No alto do Monte Hermon, ele testemunhou a rebelião dos “vigilantes” — anjos que desejaram o que não lhes pertencia, e tocaram a carne dos homens com o fogo de uma escolha impura. E foi Henoc quem ousou interceder por eles, levando sua súplica ao próprio Deus. Mas a justiça divina, nesses textos, não se dobra: o que cai, cai para aprender com o abismo.
Henoc, no entanto, não caiu. Subiu.
Em certos manuscritos místicos, dizem que ele não apenas subiu, mas foi transformado. Tornou-se o anjo Metatron, o mais elevado dos celestes, escriba do Altíssimo, aquele que conhece os nomes secretos de todas as almas. Uma metamorfose que não rompe a humanidade — mas a leva ao seu esplendor mais puro.
Henoc é a lembrança de que há espaço, ainda, para os que caminham com Deus sem fazer barulho. Para os que não se gabam de suas visões, mas vivem com humildade diante do eterno. Para os que sabem que ressurreição começa quando a alma aprende a permanecer de pé, mesmo sob o peso do invisível.
Talvez, no fim das contas, Henoc não tenha sido levado para longe — mas para dentro. Do coração de Deus. Do centro da luz. Do ponto exato onde o tempo já não se impõe e o ser não se divide.
Ele foi.
Mas há em nós, que ficamos, um rastro de sua travessia.
Um eco de cristais celestes.
Um fio de esperança que nos lembra:
há um céu em cada silêncio que escolhemos habitar com verdade.
Sônia Lupion Ortega Wada
Henoc não partiu — ascendeu
Henoc não partiu —
foi colhido pela alvorada
como se o céu, em súbita ternura,
o tomasse nos braços.
Não houve túmulo,
não houve adeus,
apenas um passo dado
para dentro do invisível.
Caminhou entre cristais e estrelas,
não como hóspede,
mas como quem reconhece
a morada de onde veio.
Viu os anjos chorando por seus erros,
e não os julgou —
levou sua compaixão até o alto
e ali permaneceu.
Henoc não foi levado —
ele se ofereceu inteiro,
como se a fé bastasse para vencer
o peso do chão.
Há homens que constroem altares.
Henoc foi um.
Não com pedras,
mas com silêncio e permanência.
E quando o tempo se cansar de girar,
talvez o vejamos outra vez:
não em glória,
mas na leveza
dos que caminham com Deus
sem querer chegar primeiro.