Sônia Lupion Ortega Wada
“Coragem é agir com o coração.”
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Rito de Passagem

 

Em muitas tradições espirituais, raspar a cabeça é um gesto de entrega.

Os monges budistas o fazem ao cruzar a soleira do templo — sinal de renúncia, desapego, de deixar para trás o que é aparência para tocar o que é essência.

As freiras, ao tomarem seus votos, também se despem dos cabelos: símbolo de pureza, de uma nova vida que começa de dentro.

 

É um ritual.

Uma passagem.

Um recomeço.

 

Curiosamente, a doença — especialmente o câncer — também empurra muitas mulheres para esse mesmo limiar.

Não é um convite gentil. É um rompimento.

Não há canto sagrado nem cerimônia.

Mas ainda assim, há rito.

E há alma.

 

Assistir aos cabelos caindo é como ver, em silêncio, pedaços de quem se foi se desprendendo.

No início, cada fio que vai embora parece uma pequena morte.

Mas com o tempo, é possível compreender: é também um nascimento.

 

Algumas choram. Outras se antecipam, raspam logo, tomam nas mãos aquilo que parecia controle perdido.

Há quem leve a máquina à cabeça como quem acende um incenso para o invisível.

Um gesto de coragem —

e de fé.

 

Dizem que quando tudo o que é superficial se vai, o essencial aparece.

E ali, entre a ausência de cabelo e a presença de si, muitas mulheres se veem inteiras pela primeira vez.

 

É estranho — mas profundamente verdadeiro — perceber que a doença também purifica.

Remove o excesso, a ilusão, o apego.

E no vazio que fica, algo maior começa a respirar.

 

O rito não está no ato em si.

Está na transformação que ele provoca.

Está na travessia.

 

E há uma beleza sutil nisso: em japonês, rito soa como hito.

Hito significa “pessoa”.

Talvez todo rito verdadeiro seja isso: um processo que devolve a mulher a si mesma.

 

A que sai do outro lado não é a mesma.

É mais nua.

Mais limpa.

Mais presente.

Ela perdeu o que achava ser seu — e descobriu o que nunca poderá ser tirado.

 

Não é bonito no início.

Não é fácil nem poético.

Mas é sagrado.

 

E para muitas, é exatamente ali —

no chão do medo, no altar da entrega —

que tudo recomeça.

Sonia Lupion Ortega Wada
Enviado por Sonia Lupion Ortega Wada em 05/06/2025
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