Quando a Canção é a Própria Casa
(Para quem escuta entre palavras, como quem ouve música invisível)
Há dias em que só a música me alcança.
Dias em que as palavras, por mais belas, tropeçam na garganta.
Nesses dias, é a canção que me embala, me traduz, me devolve a mim mesma.
A música — como a arte — não exige explicação.
Ela entra pelos poros, não pelos argumentos.
Nos toca onde a razão não chega.
E talvez seja por isso que, mesmo sem saber cantar, sempre cantei com a alma.
Lembro de embalar meus filhos com canções inventadas.
Sem rima.
Sem métrica.
Mas cheias de intenção.
Porque, para uma criança, o que importa não é a afinação — é o afeto com que se canta.
A arte inteira sabe fazer: amar sem pedir licença.
A música que me salvou não está nos grandes concertos, mas nas pequenas notas do cotidiano:
o tilintar do garfo na porcelana,
o suspiro de um idoso ao adormecer,
o som da chaleira que me lembra que ainda há água para aquecer.
E quando penso na arte, não penso em museus ou palcos.
Penso na amiga que borda suas mágoas em pano cru.
No menino que rabisca um muro como se ali pudesse respirar.
Na mulher que dança sozinha no quarto ao som de uma lembrança boa.
Arte é isso:
o gesto que insiste.
o corpo que pulsa.
a alma que se recusa a morrer, mesmo quando o mundo parece surdo.
Por isso, minha espiritualidade passa também pela música e pela arte.
Porque ambas me lembram que viver é compor.
Mesmo desafinando.
Mesmo com pincéis gastos ou versos inacabados.
Hoje, minha canção favorita é o som da palavra que nasce quando encontro alguém como eu—
que escreve como se tocasse um instrumento invisível.
Que costura o pensamento com timbres de ternura.
Que me convida a lembrar:
o mundo pode ser duro, mas ainda há violinos.
Ainda há mãos que tocam.
Ainda há ouvidos dispostos a escutar.
E enquanto houver escuta, há esperança.
Enquanto houver arte, há casa.
—
Sônia Lupion Ortega Wada
Da terra do silêncio, onde ainda se canta baixinho.