O Anfiteatro Onde as Vozes Tocaram Deus
No coração de Tsu-shi, na província de Mie, o tempo se abriu em flor dentro do Bunka Center. Era uma tarde comum — dessas em que o céu derrama uma luz suave sobre os telhados do mundo —, mas ali, no centro cultural da cidade, o ordinário se transformou em presença sagrada.
Logo na entrada, o espaço nos abraça: paredes modernas, linhas elegantes, escadas flutuantes. Mas há algo mais. O ar vibra diferente. Há quadros, esculturas, instalações minimalistas e sutis, como se o espírito da arte se espalhasse em cada canto, pronto para ensinar silêncio e assombro. Caminhar por ali é como andar por dentro de um templo invisível.
Era dia de apresentações de corais escolares. Um evento de competição, diziam. Mas naquele palco não havia disputa — havia entrega. Havia pureza. Era a música se oferecendo ao mundo como oferenda.
Fui para ver meu filho. Meu menino-tenor. Desde pequeno, ele carrega uma voz que não cabe dentro do corpo. Canta como quem pertence à música antes mesmo de ser gente. E naquele instante, ao entrar com sua pequena turma — apenas sete jovens, três meninos e quatro meninas —, algo no ar mudou.
E então ele cantou.
E no momento em que sua voz — única, solitária, macia e cheia de poder — atravessou o auditório, o tempo parou. A nota era corpo celeste. Era flecha de luz. Foi como se uma pétala invisível de cerejeira tivesse se soltado de um galho imaginário e pairasse acima de nós — dançando entre os refletores, no teto alto do anfiteatro moderno, diante da acústica perfeita.
O maestro aniversariante foi surpreendido e homenageado e com a veste vermelha do Kanreki — o ritual japonês de renascimento aos 60 anos. Chapéu e capa de cetim, alegria no rosto, e crianças o aplaudindo como quem acolhe um mestre em seu novo ciclo. Aquilo não era uma homenagem. Era um rito ancestral disfarçado de festa contemporânea.
Outros corais vieram. Alguns tão tocantes que me arrancaram do corpo. Fechei os olhos e fui levada. Vi meu cavalo chegar — aquele do meu imaginário mais antigo — e me convidar para dançar. Ele se ergueu em duas patas, e juntos flutuamos. Eu o segurava com o coração, e nós rodopiávamos por entre galáxias. A música era chão, era teto, era tudo.
Quando todas as escolas se uniram no palco — com os sêniors, os adultos, os mestres, os coristas de todas as idades — o Bunka Center já não era auditório. Era nave, era catedral, era abraço.
Aquela multidão de vozes se organizou como uma constelação, e cantou. E não havia mais competição. Havia união. Não havia mais palco ou plateia. Havia comunhão.
A música dissolveu a matéria.
O espaço cheio de arte se tornou também espaço de espírito. E cada quadro, cada escultura parecia escutar. Como se tudo ali — pedra, madeira, vidro, corpo — soubesse que estávamos em algo sagrado.
Eu não chorei. Eu me derramei.
Fui mãe, fui menina, fui pássaro.
Fui pétala de cerejeira que não se vê, mas que dança no ar.
E caí dançando.
Ao final, já do lado de fora, as crianças se reuniram com o mestre aniversariante. Ali, sim, pude fotografar. Eles sorriram diante de uma faixa feita com carinho: “Parabéns, professor!”, diziam as letras — grandes, coloridas, como vozes em papel. Era a celebração visível do que o coração já sabia: aquele dia jamais seria esquecido.
E como se não bastasse a beleza que transbordou da arte e da infância, hoje também foi o aniversário do meu filho mais velho — aquele que, mesmo distante fisicamente, pulsa em mim com uma força antiga, que jamais se afasta.
Não pude abraçá-lo. Mas celebrei.
Celebrei o nascimento e o renascimento de um filho que me ensina sobre o tempo, sobre os ciclos, sobre o amor que não tem distância.
Hoje, dois filhos cantaram dentro de mim:
um com a voz no palco, outro com a presença no invisível.
E o céu escutou os dois.
“Atrás do mestre, meu filho.
E atrás do meu filho, as asas.
Como se a música que ele canta já soubesse para onde ele vai voar.”
Nota delicada da autora:
Por se tratar de um evento escolar com a presença de menores de idade, não foi permitido filmar ou fotografar dentro do anfiteatro, conforme as normas de proteção à infância e juventude vigentes no Japão. A beleza daquele momento vive em nós — e agora também, nestas palavras.
https://youtu.be/IQI-h1k9yFs?feature=shared
By Sônia -Flôr de Cerejeira 🌸