Onde Voam as Manhãs
A manhã nasceu clara, mas não calma — tinha urgência mansa, dessas que a alma sente antes do relógio.
Lá fomos nós: eu, Isabel — minha companheira de asas — e Pedrinho, que insiste em atrasar, como se o tempo fosse elástico e a vaidade da juventude, sagrada.
Ele tem seus rituais. A beleza, para ele, é um altar.
Para chegar, cortamos por dentro do tamboo, que é como aqui se chama o campo de arroz. Mas não é só campo — é caminho sagrado, é paisagem que muda o mundo.
Hoje, ele não refletia o céu como em outros dias.
As águas estavam recolhidas, e no lugar, um verde recém-nascido — brotinhos que mal se erguem, mas já encantam.
É um verde só, inteiro e macio, sob o calor do sol e um céu que se deixava atravessar por uma única nuvem, feita de traço, feita de vento.
Seguimos por uma estrada tão estreita que, às vezes, Isabel — alada e paciente — precisa parar, ceder, esperar que outro passe.
É um caminho entre mundos.De um lado, o Japão antigo, com suas casas silenciosas e telhados inclinados. Do outro, a cidade desperta, apressada, com seus trens e carros, com seus passos de formiga — milhares, marchando no horário de pico.
Pub - Dog Land, no meio da Roça. Por tudo isso, amo o Japão e seu Povo.
E nós no meio, com Beatles no rádio e poesia nos olhos.
A escola surge com seu balé de carros, crianças sendo deixadas como sementes lançadas à terra. É preciso paciência. Paciência e ternura.
Na volta, o tempo muda de roupa. Veste-se de silêncio e espaço.
Agora posso ver. Parar. Fotografar com os olhos.
Porque mesmo na repetição dos dias, há sempre algo que floresce diferente, se o olhar estiver atento.
Já em casa, o calor toca os trinta graus. Minhas flores, no quintal, erguem as pétalas como quem pede água — e eu atendo.
Sou jardineira de pele sensível, mas alma entregue.
A primavera chegou depois de um inverno longo, e a neve, que parecia silêncio, era proteção.
Agora, tudo renasce.
E renasce com uma beleza que não se explica — só se sente.
Sento ali, entre cores e raízes. Medito.
Não peço nada. Apenas estou.
Ali, com as mãos úmidas de terra e o coração banhado de sol, eu me conecto com o que é divino.
Porque há dias em que não é preciso mais do que isso:
um caminho estreito, um verde nascente,
e o milagre de estar viva.
E assim sigo, com meu amor por esse país que mistura arte, casarões antigos e modernidade com tanta harmonia.
Encanta-me o olhar japonês, o respeito que transborda até nos pequenos gestos.
Os bares e restaurantes — simples ou refinados — acolhem o kyakusan, o cliente, com um sorriso no rosto e uma reverência sincera:
“Irasshaimase” — seja bem-vindo.
É um povo que não toca no que não é seu.
Um simples lenço caído na rua é recolhido com cuidado, deixado preso a algum lugar visível, para que quem perdeu possa reencontrar.
Houve um dia em que meu filho passou horas com amigos no parque do bairro e esqueceu por lá sua carteira — com dinheiro, documentos, identidade.
Na manhã seguinte, ela estava depositada em nossa caixa de correio.
Bendito seja esse povo.
Hoje, amo este lugar.
Porque ele me acolheu com beleza, com ética, com reverência.
E conquistou meu coração.
Sônia - Flor de Cerejeira 🌸
Para Hull de La Fuente, poetisa que brilhou aqui no Recanto das Letras.
Fui filha adotiva- Ela dizia- “ Minha Filha Torta”
Partiu, foi escrever Cordéis para Deus.
Minha Mamna Veinha quanta saudade!
Você vive no meu coração ♥️
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Fotos- Acervo pessoal da autora