Quando o céu desce ao chão
No Japão, o verão não acaba — ele derrete. Não desce dos termômetros: escorre pelas paredes, pelos pescoços, pelas costas suadas dos trabalhadores de capacete branco. Até que, um dia, o calor se cansa de si mesmo. E então vem ele: o tufão.
Nascido do Pacífico, esse mar de nome sereno e comportamento traiçoeiro, o tufão chega como um oni que escapou das lendas e resolveu brincar de verdade com o mundo. Vento, água e raiva. Um demônio invisível, com garras feitas de correntezas.
A gente sente antes de ver. O ar pesa. O céu fica doente, um azul escuro que perdeu a fé. Nuvens carregadas se acotovelam, disputando espaço como se o firmamento fosse um corredor estreito de estação de trem.
As primeiras gotas parecem inofensivas — como se alguém lavasse o céu com carinho. Mas é cilada. Em minutos, a cidade vira caos. O asfalto não respira. Os rios se revoltam. O temporal não pede licença nem desculpa. Alaga tudo: ruas, salas, corações.
Já vi bicicletas boiando, cães se debatendo, velhas agarradas em postes. Já ouvi o choro de gente que perdeu tudo — e o silêncio de quem não conseguiu dizer o que perdeu. Aqui, quando chove assim, a vida é um vaso de cerâmica prestes a cair do aparador.
A previsão do tempo vira novela de terror. “Vento de 130 km/h”, diz a TV. E os alertas tocam nos celulares como se fossem sinos de templo: preparem-se, fechem janelas, rezem por dentro. Porque o monstro está vindo.
E ele sempre vem. Agosto costuma abrir os portões. É o primeiro aviso: os ventos chegaram, os deuses estão agitados, mantenham-se pequenos. Setembro raramente descansa. Outubro cobra o preço. Mas é em novembro que eles se despedem.
O último tufão não costuma fazer estardalhaço. Passa mais rápido, como um velho cansado de lutar. Deixa um rastro de silêncio e folhas grudadas nas janelas. E então, como quem faz um gesto de cortesia sombria, ele diz: “até o verão que vem.”
E a gente respira. Não aliviado — mas alargado. Porque viver no Japão é isso: saber que o céu pode descer ao chão a qualquer momento, e mesmo assim plantar flores na varanda.
Anita Harmon