“Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz.”
Mateus 6:22
Não são os olhos físicos que iluminam a vida — são os olhos da alma. E como nos ensina a psicologia e a espiritualidade, esses olhos não nascem prontos. Eles se formam a partir do modo como enfrentamos a dor, elaboramos as experiências e construímos o sentido da nossa identidade.
Vivemos uma época em que muitos confundem trauma com identidade, dor com título de nobreza e vitimização com espiritualidade. Uma geração que evita a dor, abafa a solidão com barulho, e substitui o sentido por distrações. A luz, aquela que vem de dentro, tornou-se escassa. E mesmo cercados de posses, muitos parecem vagar no escuro.
Este artigo é sobre isso: os caminhos que moldam o olhar. Sobre aqueles que, mesmo sem nada, construíram tudo. E sobre os que, tendo tudo, ainda não encontraram a si mesmos.
Quando a dor ensina a ver
A psicologia do desenvolvimento humano é clara: amadurecer requer elaboração. E a elaboração, quase sempre, nasce da dor.
Pessoas que enfrentaram perdas, desafios precoces, escassez afetiva e econômica, desenvolveram, em muitos casos, uma força psíquica sólida, real, estável.
São mulheres e homens que acordaram cedo, seguraram o osso da alma para seguir em frente. Que cuidaram de filhos sozinhos, que enfrentaram o luto, a doença, o abandono — e fizeram da vida um altar de resistência.
Muitos nunca tiveram acesso à terapia ou aos recursos da saúde mental. Mas encontraram seus próprios caminhos de elaboração interior: a conversa com Deus, o canto na cozinha, o conselho da avó, a fé silenciosa.
A resiliência aqui não é conceito de livro — é carne.
A fé não é filosofia — é chão.
Essas pessoas não passaram ilesas, mas passaram inteiras.
Seus olhos, depois de tantos enfrentamentos, tornaram-se bons.
Não por ignorância, mas por sabedoria.
Bons porque aprenderam a ver o essencial.
Quando o excesso encobre a ausência
Em contraste, há quem tenha tido tudo — e nada.
A infância recheada de brinquedos, mas carente de presença. O afeto comprado com presentes. A permissividade disfarçada de cuidado.
Pessoas criadas no excesso material, mas no vazio afetivo.
Filhos de pais que ofereceram ter, mas nunca ensinaram o ser.
E como nos mostra a psicologia, isso cria uma identidade difusa — um eu frágil, instável, que nunca se estruturou.
Na fase adulta, esses indivíduos se refugiam em prazeres imediatos: vícios, relações simbióticas, gastos impulsivos, dependência emocional. Rejeitam o esforço real, espiritual ou emocional.
Ao menor sinal de dor, recuam. Ao menor chamado de responsabilidade, se calam ou culpam os outros.
Muitos vivem à sombra da mãe, do pai, do parceiro — não por necessidade, mas por conveniência emocional.
São os que transformam dor em desculpa. Que encenam sofrimento, mas evitam enfrentamento.
E pior: ao se aproximarem de quem construiu sua luz pela luta, tentam se ancorar — sem vontade de se transformar.
Sugam, mas não trocam. Querem a luz alheia, mas recusam o preço da travessia.
Trata-se de uma forma de cegueira emocional: os olhos, viciados no próprio reflexo, tornam-se incapazes de ver o outro — ou a si mesmos com verdade.
E como disse Jesus: quando os olhos não são bons, todo o corpo permanece em trevas.
Quando o trauma chama de amor aquilo que prende
Muitos dos que viveram sob o império do excesso — e da ausência — carregam, na verdade, vínculos afetivos distorcidos desde a infância.
A falta de um amor verdadeiro — aquele que sustenta, corrige e ampara com firmeza e ternura — gera uma fome emocional que, na vida adulta, passa a confundir migalhas com banquete.
É assim que muitos romantizam relações abusivas.
Não veem as correntes — veem apenas os gestos mínimos que trazem um alívio momentâneo.
Não reconhecem o padrão — reconhecem o calor fugaz, semelhante ao que viveram quando pequenos.
O que é tóxico passa a parecer familiar. E o que é saudável, estranho demais para confiar.
Libertar-se começa com o reconhecimento do que adoece.
Mesmo que venha embrulhado em carinho. Mesmo que se pareça com “cuidado”.
Não basta que algo pareça amor — é preciso que seja.
E amor que fere, que controla, que apaga, não é amor.
É saudade mal resolvida do que nunca se teve.
Reconhecer isso — sem ódio, sem culpa, mas com lucidez — é um dos primeiros sinais de que os olhos começaram a se curar.
De que a alma, mesmo trincada, começou a enxergar com mais verdade.
Amor não se compra. E não se terceiriza.
Muito ter e pouco ser não é amor.
É abandono travestido de cuidado.
É presença oca, que dá tudo — menos estrutura.
Amar alguém é construir com ele a capacidade de existir com dignidade. É ensinar limites, ensinar espera, ensinar perda. É ser espelho confiável — mesmo quando é difícil.
Os que foram privados desse amor verdadeiro carregam feridas profundas. Mas há uma diferença entre quem escolhe curá-las — e quem as transforma em desculpa eterna.
A espiritualidade cristã chama isso de conversão: o virar-se para dentro com verdade e desejo de mudança.
A psicologia chama de reintegração do eu.
Ambas falam da mesma coisa: responsabilidade por si.
Ou se continua culpando o mundo, ou se começa a caminhar em direção à luz.
A cura do olhar
Olhos bons não são olhos perfeitos. São olhos que já passaram pela escuridão — mas decidiram ver diferente.
São olhos que não se vendem, não se queixam à toa, não esperam salvadores.
São olhos que reconhecem os próprios limites, mas não se escondem neles.
Que não se deixam manipular pela dor do outro — nem pela própria.
Olhos curados sabem que amor é caminho, não favor.
E quando os olhos, enfim, ficam bons — o corpo todo se ilumina.
A alma se firma.
A vida, mesmo com suas faltas, começa a florescer por dentro.
Esse é o milagre silencioso que não precisa de plateia:
o dia em que, após tanta escuridão, alguém aprende a ver com verdade.
E decide não mais se apagar.