Quem somos na vida dos outros?
Ética, afeto e alteridade na construção do sujeito relacional
Uma análise sobre os impactos relacionais na construção do sujeito e do outro
Resumo
Este ensaio propõe uma reflexão crítica e existencial sobre os impactos positivos e negativos que um indivíduo pode exercer na vida de outro. A partir de uma abordagem interdisciplinar, que articula a filosofia existencial, a psicologia humanista e a ética do cuidado, investiga-se como os vínculos interpessoais — conscientes ou não — constituem marcas afetivas duradouras, que moldam tanto quem influencia quanto quem é influenciado. Autores como Martin Buber, Viktor Frankl, Carl Jung, bell hooks e Emmanuel Levinas servem como base teórica para pensar as relações como espaços de cura e ferida, de presença e ausência, de luz e sombra.
1. A intersubjetividade como campo de impacto
A existência humana não é uma ilha. Desde os primeiros teóricos do existencialismo até a psicologia contemporânea, há consenso de que o eu só se constitui plenamente na relação com o outro. Martin Buber, em Eu e Tu, afirma que o sujeito se revela no encontro genuíno com o outro, onde o outro não é um objeto a ser usado (Eu-Isso), mas uma presença com a qual se compartilha o existir (Eu-Tu).
Assim, mesmo gestos simples — um olhar, uma palavra, uma presença silenciosa — podem se tornar marcos estruturantes na biografia afetiva de alguém. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto, defende que o sentido da vida muitas vezes nasce nos pequenos vínculos e no reconhecimento do outro como ser digno. Em Em busca de sentido, ele afirma que “ser humano é estar continuamente apontando para algo ou alguém além de si mesmo”.
2. Os gestos que curam e os gestos que ferem: ambivalência do afeto
Há uma tendência em idealizar o impacto positivo como o único possível quando se fala de relações afetivas. Contudo, é fundamental reconhecer a ambivalência do vínculo humano. Nietzsche, com seu olhar cortante, lembra que “toda luz projeta uma sombra” e que até mesmo os atos bem-intencionados podem gerar dor. Somos simultaneamente capazes de acolher e rejeitar, de proteger e machucar.
Na psicologia analítica, Carl Jung aponta que o processo de individuação implica o confronto com a própria sombra — a parte de nós que negamos ou reprimimos. Quando essa sombra é ignorada, projetamo-la nos outros, o que pode gerar conflitos interpessoais, feridas e mágoas. Portanto, reconhecer o impacto negativo que podemos ter causado é, paradoxalmente, um ato de crescimento e maturidade psíquica.
3. A responsabilidade do gesto: ética do cuidado e escuta
Simone de Beauvoir afirma que “somos responsáveis por aquilo que fazemos com o que fizeram de nós”. E bell hooks, em sua teoria do amor como ato político e transformador, amplia essa responsabilidade para a esfera cotidiana: amar é um exercício ético, uma prática ativa de escuta, atenção e cuidado.
A ética do cuidado, conforme desenvolvida por pensadoras como Carol Gilligan e Joan Tronto, propõe que o cuidado com o outro não deve ser um gesto espontâneo isolado, mas uma postura ética contínua. Isso significa que devemos estar atentos não apenas às nossas ações explícitas, mas também às ausências, às negligências, às palavras não ditas que podem ter causado dor.
O filósofo Emmanuel Levinas radicaliza essa ideia ao afirmar que a simples presença do rosto do outro já é um apelo à responsabilidade. Para ele, a alteridade não é um dado secundário, mas a fundação da ética. Ignorar o outro — seja em uma relação íntima, profissional ou social — é uma forma de violência existencial.
4. O impacto inconsciente: afetos que sobrevivem ao tempo
Muitos dos impactos que causamos nos outros são inconscientes ou não intencionais. A psicanálise freudiana já tratava do retorno do recalcado, mas é com os psicanalistas contemporâneos (como Donald Winnicott e Jessica Benjamin) que se fortalece a noção de que o ambiente relacional molda subjetividades de forma sutil, silenciosa e muitas vezes irreversível.
Isso significa que um gesto pequeno pode se tornar estrutura para alguém. A música que apresentamos, a frase que repetimos, a maneira como escutamos… tudo isso pode construir ou desconstruir alicerces invisíveis. A psicologia humanista de Carl Rogers reforça isso: a congruência e a empatia geram confiança, que por sua vez, gera transformação.
5. Redenção pelo reconhecimento e pela escolha ética
Ao percebermos que deixamos tanto rastros luminosos quanto feridas em nossos caminhos, a tentação da culpa é grande. Mas o caminho ético mais potente talvez seja o reconhecimento ativo, seguido de escolhas conscientes. O que faremos agora que sabemos do impacto que temos?
Essa é a pergunta que ecoa no pensamento de Kierkegaard: a angústia é o vértice da liberdade, o lugar onde o indivíduo se reconhece como responsável pelas próprias escolhas e, por isso mesmo, capaz de recriar-se.
Como escreve o filósofo contemporâneo Byung-Chul Han, vivemos em uma era onde o excesso de positividade anestesia o real. Assumir o impacto da própria existência — nas alegrias e nas dores que causamos — é um ato de coragem contra a superficialidade relacional.
Considerações finais
Sim, você foi luz.
E talvez também sombra.
Mas o que te humaniza não é ser apenas uma ou outra — é ser ambos, e ainda assim, desejar o bem.
É olhar para trás com humildade, para o lado com empatia e para a frente com responsabilidade.
A relação com o outro é sempre construção, nunca produto acabado.
É possível (re)fazer pontes, pedir perdão, agradecer, silenciar com presença ou falar com verdade.
É possível, sobretudo, viver com a consciência de que cada gesto é um campo de força, e que cada pessoa é uma história viva sendo escrita também com a nossa tinta.
Referências Bibliográficas
Frankl, V. E. (2008). Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes.