Sônia Lupion Ortega Wada
“Coragem é agir com o coração.”
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Carta de Anita Harmon para Franz Kafka

(Sobre como algumas cartas duram mais que a própria vida)


 

Querido senhor Kafka,

 

Escrevo-lhe de um tempo que talvez o senhor não imaginasse que chegaria. Um tempo onde os homens andam com satélites no bolso e as crianças tocam as telas como quem procura estrelas. Escrevo-lhe do Japão, de uma manhã clara de verão — 28 de julho de 2025 — para lhe contar uma coisa: as suas cartas ainda vivem.

 

Sim, aquelas que o senhor escreveu para a menina Youssi, com mãos trêmulas de ternura e um coração em exílio, ainda encantam o mundo. Ainda seguram o tempo pela borda da página. Ainda há quem as leia com os olhos marejados e a alma em suspenso, como quem reencontra o fio da esperança numa estação de trem vazia.

 

No meu caso, encontrei suas cartas numa pequena livraria em Tóquio. Era um exemplar discreto, com cheiro de vento antigo, esperando alguém que acreditasse em fadas ou em fantasmas gentis. Comprei-o como quem adota uma estrela cadente. E pensei nas minhas netinhas — pequenas viajantes do tempo e do afeto — que talvez um dia precisem saber que houve um homem que escreveu para uma menina que havia perdido uma boneca.

 

Que a menina chorava. E que o senhor não a deixou sozinha.

 

O senhor escreveu com tanto cuidado que as palavras pareceram virar mãos. Cada carta era um abraço, cada frase, um pedaço de mundo refeito. O senhor não devolveu a boneca — devolveu à menina a capacidade de imaginar. E isso é mais do que muitos fazem em uma vida inteira.

 

Eu, que também escrevo cartas, aprendi com o senhor que nem sempre é preciso devolver o que foi perdido. Às vezes, basta oferecer um outro caminho.

 

Hoje, senhor Kafka, o mundo continua um pouco áspero. Mas ainda existem meninas que perdem bonecas. Ainda existem pessoas com olhos de perder e corações de achar. E ainda há cartas.

 

Ainda há palavras que tentam costurar o que a vida rasgou.

 

E há algo mais que preciso lhe contar: as meninas de hoje — muitas delas — nascem já sabedoras de si. Carregam no peito a clareza dos ventos e nos olhos a firmeza dos séculos. O futuro foi bom, senhor Kafka. Meninas e meninos como Youssi cresceram fortes, e muitos reconstruíram o mundo após a Segunda Guerra. Plantaram esperança onde antes só havia escombros. Erguem pontes invisíveis entre o que se perdeu e o que pode, ainda, ser reinventado. São eles que mantêm viva a chama que o senhor acendeu com uma caneta e um gesto de ternura.

 

Obrigada por cada palavra que escreveu como quem planta flores num inverno longo demais. Obrigada por ter sido o carteiro da alma daquela menina. Hoje, sou eu quem entrega esta carta — à sua memória, à sua gentileza, ao seu gesto que atravessou o tempo e me alcançou aqui, do outro lado do mundo.

 

Com reverência e ternura,

Anita Harmon

 

 

 

 

Sonia Lupion Ortega Wada
Enviado por Sonia Lupion Ortega Wada em 30/06/2025
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