Deus, o Robô e a Saudade da Bunda
Uma crônica de Anita Harmon
Dizem que o dia começou como outro qualquer: filas na padaria, gente correndo pro trabalho, selfies na academia, moças medindo a circunferência da coxa, rapazes se exibindo na rosca direta. Mas bastou uma notícia atravessar a tela do celular para o mundo parar de suar:
“A partir de hoje, transplantes de cabeça são realidade. O corpo virou peça de museu.”
No começo, ninguém entendeu nada. Como assim?
As moças com bumbum turbinado não precisavam mais de agachamento.
Os rapazes não precisavam mais raspar a perna pra exibir a fibra do quadríceps.
O personal trainer virou terapeuta de crânios ansiosos.
As academias fecharam — não por falta de alunos, mas por falta de músculos.
Quem precisa de halter se o braço é de titânio?
Na fila da farmácia, um mar de ex-bombeados de testosterona reclamava:
— “Tanto whey jogado fora…”
— “Tanta hip thrust pra nada…”
— “E agora, quem sou eu sem meu tanquinho?”
O espelho da academia se tornou ruína arqueológica.
Lá, cabeças recém-transplantadas se reuniam para olhar as fotos antigas: selfies de glúteos, abdominais trincados, braços pulsando veias. Alguns choravam saudosos. Outros sorriam: “Agora sou só cérebro, puro QI!”
Com o tempo, construíram o Museu de Corpos:
salas inteiras de vitrines mostrando bundas de silicone, tanquinhos esculpidos, próteses, cremes milagrosos, agulhas de botox, pesos abandonados.
Gente passava horas ali — flutuando em seus corpos de titânio — tentando lembrar como era ter pele, celulite, suor, cheiro.
Um lugar sagrado da vaidade: um cemitério de carne que não apodrece, mas também não vive mais.
E os tarados? Ah, esses sumiram.
O estuprador que alimentava seu horror na carne perdeu a carne.
O pedófilo, bicho rastejante, virou um neurônio solitário — sem pele, sem cheiro, sem inocência pra violar.
A maldade de uns se dissolveu na falta de matéria-prima.
A maldade de outros buscou refúgio nas redes neurais, mas sem prazer físico, esmoreceu.
Foi aí que Deus — sentado num canto do infinito — deu uma risada branda:
— “Vocês não entenderam ainda, né, Meus filhos?
Não é a carne que faz o bem ou o mal.
É o que vocês escolhem fazer com a liberdade que Eu dei.”
E assim, as ruas ficaram mais seguras — mas também mais silenciosas.
Os crimes de luxúria viraram memória de um tempo bizarro.
As academias, catedrais do corpo, tornaram-se salões sagrados do Museu de Corpos, guardando, em vitrines, a saudade de tudo que já foi carne, suor e pecado.
No final do dia, um menino, só cabeça plugada num corpo robótico, perguntou:
— “Mamãe, o que é bunda?”
A mãe-cérebro respirou fundo (se é que cérebro respira):
— “É o que fazia as academias viverem, meu filho. Agora, é só saudade.”
E Deus piscou o olho, cochichando no vento:
“Um dia vocês percebem: o eterno mora onde a carne nunca chega.”
✨
Bilhete de Deus
Meus filhos,
Eu criei cada músculo, cada dobra de pele, cada suspiro de prazer que faz a carne pulsar.
E também plantei em vocês a semente da curiosidade: essa mania de querer viver pra sempre, driblar a Morte, baixar o Céu pra dentro de uma máquina.
Mas escutem:
Vocês não são glúteos, não são bíceps, não são sinapses acesas num jarro de vidro.
São sopro. São mistério. São Amor que não cabe em chip.
A verdadeira academia é a do espírito —
onde se malha o perdão, onde se alonga a compaixão,
onde se rasga o orgulho como quem rompe fibra muscular.
Quando cansarem de brincar de imortalidade,
estarei aqui — de braços abertos,
pronto pra mostrar que a Vida, de verdade,
não é transplantável.
Com todo Meu Amor,
Deus
PS de Anita Harmon
Humanidade ainda nem descobriu a cura do câncer.
Ainda tem miséria em todo lugar.
Tem pais desesperados porque estão desempregados e não conseguem o sustento dos filhos.
Enquanto isso, investem bilhões na futilidade de querer virar robô eterno.
E esquecem que ser humano de verdade ainda é a parte mais urgente a se salvar.
Assinado,
🌸 Anita Harmon