Sônia Lupion Ortega Wada
“Coragem é agir com o coração.”
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Deus, o Robô e a Saudade da Bunda

Uma crônica de Anita Harmon

 

 

 

Dizem que o dia começou como outro qualquer: filas na padaria, gente correndo pro trabalho, selfies na academia, moças medindo a circunferência da coxa, rapazes se exibindo na rosca direta. Mas bastou uma notícia atravessar a tela do celular para o mundo parar de suar:


“A partir de hoje, transplantes de cabeça são realidade. O corpo virou peça de museu.”

 

No começo, ninguém entendeu nada. Como assim?


As moças com bumbum turbinado não precisavam mais de agachamento.

Os rapazes não precisavam mais raspar a perna pra exibir a fibra do quadríceps.

O personal trainer virou terapeuta de crânios ansiosos.

As academias fecharam — não por falta de alunos, mas por falta de músculos.

Quem precisa de halter se o braço é de titânio?

 

Na fila da farmácia, um mar de ex-bombeados de testosterona reclamava:

— “Tanto whey jogado fora…”

— “Tanta hip thrust pra nada…”

— “E agora, quem sou eu sem meu tanquinho?”

 

O espelho da academia se tornou ruína arqueológica.

Lá, cabeças recém-transplantadas se reuniam para olhar as fotos antigas: selfies de glúteos, abdominais trincados, braços pulsando veias. Alguns choravam saudosos. Outros sorriam: “Agora sou só cérebro, puro QI!”

 

Com o tempo, construíram o Museu de Corpos:

salas inteiras de vitrines mostrando bundas de silicone, tanquinhos esculpidos, próteses, cremes milagrosos, agulhas de botox, pesos abandonados.

Gente passava horas ali — flutuando em seus corpos de titânio — tentando lembrar como era ter pele, celulite, suor, cheiro.

Um lugar sagrado da vaidade: um cemitério de carne que não apodrece, mas também não vive mais.

 

E os tarados? Ah, esses sumiram.

O estuprador que alimentava seu horror na carne perdeu a carne.

O pedófilo, bicho rastejante, virou um neurônio solitário — sem pele, sem cheiro, sem inocência pra violar.

A maldade de uns se dissolveu na falta de matéria-prima.

A maldade de outros buscou refúgio nas redes neurais, mas sem prazer físico, esmoreceu.

 

Foi aí que Deus — sentado num canto do infinito — deu uma risada branda:

— “Vocês não entenderam ainda, né, Meus filhos?

Não é a carne que faz o bem ou o mal.

É o que vocês escolhem fazer com a liberdade que Eu dei.”

 

E assim, as ruas ficaram mais seguras — mas também mais silenciosas.

Os crimes de luxúria viraram memória de um tempo bizarro.

As academias, catedrais do corpo, tornaram-se salões sagrados do Museu de Corpos, guardando, em vitrines, a saudade de tudo que já foi carne, suor e pecado.

 

No final do dia, um menino, só cabeça plugada num corpo robótico, perguntou:

— “Mamãe, o que é bunda?”

 

A mãe-cérebro respirou fundo (se é que cérebro respira):

— “É o que fazia as academias viverem, meu filho. Agora, é só saudade.”

 

E Deus piscou o olho, cochichando no vento:

 

“Um dia vocês percebem: o eterno mora onde a carne nunca chega.”

 

 

Bilhete de Deus

 

Meus filhos,

 

Eu criei cada músculo, cada dobra de pele, cada suspiro de prazer que faz a carne pulsar.

E também plantei em vocês a semente da curiosidade: essa mania de querer viver pra sempre, driblar a Morte, baixar o Céu pra dentro de uma máquina.

 

Mas escutem:

Vocês não são glúteos, não são bíceps, não são sinapses acesas num jarro de vidro.

São sopro. São mistério. São Amor que não cabe em chip.

 

A verdadeira academia é a do espírito —

onde se malha o perdão, onde se alonga a compaixão,

onde se rasga o orgulho como quem rompe fibra muscular.

 

Quando cansarem de brincar de imortalidade,

estarei aqui — de braços abertos,

pronto pra mostrar que a Vida, de verdade,

não é transplantável.

 

Com todo Meu Amor,

Deus

 

 

 

PS de Anita Harmon

 

Humanidade ainda nem descobriu a cura do câncer.

Ainda tem miséria em todo lugar.

Tem pais desesperados porque estão desempregados e não conseguem o sustento dos filhos.

 

Enquanto isso, investem bilhões na futilidade de querer virar robô eterno.

E esquecem que ser humano de verdade ainda é a parte mais urgente a se salvar.

 

 

Assinado,

🌸 Anita Harmon

Sonia Lupion Ortega Wada
Enviado por Sonia Lupion Ortega Wada em 05/07/2025
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