Anita Harmon e a Cabeça Nua
couro sem cabelos —
Chiquinha unta a esperança
com óleo e silêncio
Conta-se, em sussurros entre as vizinhas, que Anita Harmon apareceu no salão da Chiquinha num fim de tarde cinza, com um lenço simples cobrindo a cabeça nua.
Entrou em silêncio, como quem carrega o peso das luas que perdeu.
Sem cílios. Sem sobrancelhas. Sem o verniz da vaidade.
Apenas olhos fundos e vivos — como quem viu a morte e ainda assim escolheu o amor.
Chiquinha não estranhou.
Apenas apontou a cadeira e disse:
“Hoje a gente vai acender o que te apagaram.”
Pegou um óleo de alecrim e ternura, esfregou devagar no couro cabeludo de Anita, como quem escreve uma oração.
Desenhou sobrancelhas com traços firmes, como quem devolve rumo a um rosto que quase se esqueceu.
Soprou nos olhos dela um pó invisível de luz — cílios de coragem nascendo do nada.
E então, com um lenço de seda violeta, amarrou um turbante como se coroasse uma rainha exilada.
Depois se afastou um passo, sorriu de leve e disse:
“Agora olha pra si, Anita, como quem sobreviveu ao próprio naufrágio e voltou com as mãos cheias de conchas.”
Anita olhou. E chorou. Mas era lágrima de quem floresceu em pleno inverno.
Naquela noite, ela escreveu uma carta à sua versão antiga:
“Já não te espero. Já fui.”
Desde então, alguém escreveu no muro ao lado do salão, com batom vermelho:
“Chiquinha não penteia cabelo. Ela alinha destinos.”
E no canto, quase apagado, um bilhete com letra de Anita:
“E foi assim que voltei a nascer pela cabeça.”
O lenço como coroa
lenço violeta —
Chiquinha amarra um céu
na cabeça nua
O antes e o depois
silêncio entra
mas quem sai do salão
é clarão de aurora