Entre o Ego e a Eternidade
Um Ensaio Filosófico sobre a Jornada da Alma nas Tradições Espirituais e na Psicologia Contemporânea
Sonia Lupion Ortega Wada
Resumo
Este ensaio propõe uma reflexão transdisciplinar sobre a jornada do ser humano entre o ego e a essência espiritual, à luz da filosofia, da psicologia e das tradições religiosas. Com base em autores como Rumi, Jung, Viktor Frankl, e nas escrituras como o Bhagavad Gītā, os evangelhos cristãos e os ensinamentos budistas, investiga-se a tensão entre o ego psicológico e o Eu Superior ou alma, apontando caminhos para a reconciliação entre o humano e o sagrado na contemporaneidade.
Introdução
A crise de sentido na contemporaneidade tem muitas faces: ansiedade generalizada, vazio existencial, hipertrofia do ego e espiritualidades fragmentadas. Em meio a um cenário marcado pela exaustão informacional e pela busca constante de validação externa, a questão filosófica fundamental permanece atual: quem sou eu — verdadeiramente? E mais: qual a relação entre o eu que atua no mundo e uma possível essência interior, silenciosa e transcendente?
Este artigo propõe a seguinte tese: o ego, embora necessário à organização psíquica, é insuficiente como fundamento da identidade humana. A realização profunda do ser exige a superação ou transcendência do ego em direção ao Eu Superior — conceito que aparece, sob diversas formas, em tradições religiosas, filosóficas e correntes da psicologia transpessoal.
A metodologia é qualitativa e teórico-comparativa, baseada em análise interpretativa de textos clássicos e contemporâneos. Foram escolhidas obras de Jung, Frankl e Wilber por sua contribuição à psicologia profunda e à noção de self-transcendence, bem como textos espirituais fundantes como o Bhagavad Gītā, os evangelhos cristãos e os poemas místicos de Rumi. O objetivo é construir pontes entre diferentes visões de mundo que apontam, de forma convergente, para a mesma direção: uma jornada do ego à eternidade.
O Ego como Construção Psíquica e Limite Existencial
Na psicanálise freudiana, o ego atua como mediador entre os impulsos do id, as exigências do superego e as pressões da realidade (FREUD, 1923). Sua função é adaptativa, mas não espiritual. Na visão junguiana, o ego é o centro da consciência, porém está subordinado a uma totalidade maior — o Self, arquétipo que representa a união entre os opostos, a plenitude psíquica (JUNG, 1961).
Para Jung, a individuação é o processo de tornar-se o que se é, e isso requer o confronto com o inconsciente, a integração da sombra e a reconexão com o Self. O ego, portanto, deve amadurecer e, ao final, reconhecer sua limitação ontológica, pois não é a instância última da subjetividade.
No Budismo, não há a noção de um “eu” fixo e permanente. A doutrina do anattā (não-eu) sustenta que a identidade pessoal é uma construção efêmera composta de cinco agregados (forma, sensação, percepção, formações mentais e consciência). A libertação espiritual consiste em desapegar-se dessa ilusão e reconhecer a impermanência como lei fundamental da existência (THICH NHAT HANH, 1991).
A Alma como Fundamento Espiritual da Identidade
Ao lado do ego, muitas tradições afirmam a existência de uma dimensão mais profunda: a alma, o Eu Superior, o espírito. No Bhagavad Gītā, o ātman é o ser eterno e indestrutível. Krishna afirma: “Ele não nasce nem morre. Ele é eterno, antigo, sem começo nem fim.” (Gītā, cap. 2, verso 20).
No Cristianismo, essa dimensão aparece como a alma imortal criada à imagem e semelhança de Deus. Jesus, nos evangelhos, afirma: “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa, encontrá-la-á.” (Mt 16:25). O apóstolo Paulo retoma essa lógica ao propor o despojamento do “velho homem” (Ef 4:22) para o “revestir-se do novo”.
A psicologia transpessoal, a partir de Stanislav Grof, Abraham Maslow e Ken Wilber, propõe uma expansão da consciência além do ego. O Eu Superior não é uma entidade metafísica separada, mas uma dimensão experienciável do ser humano, acessível por estados ampliados de consciência, práticas contemplativas, rituais e autoconhecimento (WILBER, 2000).
Rumi e o Sufismo: A Aniquilação do Ego no Amor
Jalal ad-Din Rumi, poeta e mestre sufi do século XIII, é um dos grandes místicos do Islã. Em sua visão, o ego (nafs) é um obstáculo à união com o divino. A prática espiritual sufi envolve o dhikr (lembrança de Deus) e o fana — a aniquilação do eu inferior.
“Morra antes de morrer”, diz Rumi, referindo-se ao abandono das ilusões do ego para que o ser real possa emergir.
O fana não é negação estéril do eu, mas transformação profunda. Após o fana vem o baqa — a permanência no Ser — em que o indivíduo, esvaziado de si, torna-se canal do amor divino. Essa ideia ressoa com o conceito cristão de kenosis (autoesvaziamento) e com a realização da natureza búdica no Zen.
Para Rumi, o amor é a força que desestabiliza o ego e reconstrói o ser:
“Você não é uma gota no oceano.
Você é o oceano inteiro numa gota.”
(RUMI)
A Alma na Atualidade: Ruído, Silêncio e a Urgência do Sentido
A sociedade contemporânea é marcada por uma hiperidentificação com o ego. O “eu” digital, performático e autossuficiente, sobrecarrega o sujeito moderno com a obrigação constante de ser interessante, eficiente e visível. Byung-Chul Han (2010) observa que essa sociedade do desempenho gera cansaço e depressão — não por opressão externa, mas por excesso de liberdade e autoexploração.
Essa cultura também gera um novo fenômeno: o “ego espiritual”. A espiritualidade torna-se, muitas vezes, produto de consumo, adereço identitário ou estratégia de autoimagem. Técnicas de meditação, astrologia, oráculos e práticas místicas são apropriadas para reforçar o ego em vez de transcendê-lo — criando o paradoxo de um “eu espiritualizado” que teme desaparecer.
Viktor Frankl (2008), por sua vez, afirma que a busca por sentido é a necessidade fundamental do ser humano. A desconexão com o Eu Superior — ou com o divino — explica boa parte das patologias existenciais do mundo moderno. Nesse sentido, a espiritualidade emerge não como fuga, mas como resposta madura ao chamado interior por reconexão.
Essa perspectiva ressoa com Søren Kierkegaard, que já no século XIX compreendia o desespero existencial como a “doença para a morte” — um estado de sofrimento que nasce da recusa em reconhecer e viver a partir do Eu eterno. Para o filósofo dinamarquês, o ser humano só alcança sua verdade mais profunda ao reconciliar o finito e o infinito, o temporal e o eterno — tarefa que exige, paradoxalmente, atravessar o desamparo do ego para encontrar a liberdade da fé.
Considerações Finais
A presente reflexão buscou investigar a tensão entre o ego psicológico e a alma espiritual a partir de uma abordagem transdisciplinar. Com base em referências filosóficas, psicológicas e espirituais, argumentou-se que o ego — embora necessário à organização da experiência — não representa a totalidade do ser humano. A verdadeira realização exige uma abertura à dimensão mais profunda da identidade: o Eu Superior, o Self ou a alma.
Essa jornada, narrada em diversas tradições e corroborada por autores contemporâneos, apresenta-se como um processo de reconciliação entre o humano e o sagrado, entre a parte e o todo. Em tempos de hiperexposição, ansiedade e fragmentação interior, essa busca por sentido torna-se ainda mais urgente.
Como limitação deste ensaio, reconhece-se o caráter introdutório da análise, sendo possível ampliá-la por meio de entrevistas com praticantes espirituais, investigações fenomenológicas da experiência de self-transcendence, ou comparações entre tradições místicas específicas.
Por fim, reafirma-se que a escuta do chamado interior — seja ele traduzido como alma, Self ou espírito — constitui não apenas uma escolha pessoal, mas um ato filosófico e existencial.
Ao trilhar o caminho do ego à eternidade, o ser humano, como um vaso vazio, redescobre o sentido da vida não em se preencher de si, mas em tornar-se espaço onde o eterno pode habitar.
Glossário de Termos
Referências (ABNT)
CHUL HAN, Byung. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 34ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
FREUD, Sigmund. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Original: 1923)
GĪTĀ. Bhagavad Gītā. Trad. de Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood. São Paulo: Pensamento, 2009.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1961.
KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano: a doença para a morte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Original: 1849)
RUMI, Jalal ad-Din. O livro do interior. Trad. Jawid Mojaddedi. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
THICH NHAT HANH. O coração do ensinamento de Buda. Petrópolis: Vozes, 1991.
WILBER, Ken. Psicologia integral: consciência, espírito, psicologia, terapia. São Paulo: Cultrix, 2000.