O Mingau de Dona Mercês
Não era só mingau.
Era um jeito de voltar pra casa sem sair do quintal.
Dona Mercês mexia a panela como quem remenda o tempo: com paciência, fé e uma colher de pau. O mingau espessava no fogão a lenha, com cheiro de canela e saudade recente — dessas que a gente sente antes mesmo de perder.
Ela dizia que o segredo era o ponto. Nem ralo, nem grosso demais. “Tem que ter corpo de abraço”, ela falava, soprando a fumacinha que subia como reza de criança.
Nós, filhos e filhas, netos e netas esperávamos sentados no batente, joelho ralado, dente mole, os olhos grudados na fumaça e no movimento circular da colher. Era um feitiço, mas daqueles bons. A colher girava e, com ela, girava também a vida — redonda, quente, doce e com um quê de eternidade.
Às vezes ela cantava baixinho.
E parecia que a panela ouvia.
Quando o mingau ficava pronto, ela servia em tigelas esmaltadas — uma diferente da outra. A minha era azul, lascada na borda. Mas era nela que o mundo cabia.
Na primeira colherada, o céu descia pra boca da gente.
Na segunda, o tempo parava.
Na terceira, éramos só infância — sem pressa, sem peso, sem perguntas.
E dona Mercês sorria com seus olhos de forno aceso.
Hoje, já grande e cheia de dias, às vezes sinto falta daquele mingau. Tento imitar.
Mas o gosto não vem.
Talvez porque o ingrediente principal — o tempo de antes — não se vende em mercado.
E talvez, só talvez, porque só dona Mercês sabia cozinhar com a alma inteira.
Dona Mercês, viveu 101 anos.
Exemplo de força e resiliência.
A saudade é imensa ✨
Nota da Autora
Esta crônica nasceu de conversas cheias de ternura com minha querida amiga Lúcia Rodrigues. Dona Mercês, sua mãe, viveu 101 anos — e deixou marcas doces, como o mingau que preparava com tanto afeto.
Escrevi este texto como se fosse a própria Lúcia criança, embalada pelas lembranças que ela me contou. Foi um jeito literário de homenagear essa mulher admirável, costurando memórias com palavras.
Com todo o respeito e carinho à família, ofereço este texto como um abraço — daqueles que aquecem por dentro, como o mingau de Dona Mercês.
Sonia Lupion Ortega Wada ✨