Quando Amar também Machuca
Epígrafes
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu:
tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.”
— Eclesiastes 3:1,8
“O contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.”
— Elie Wiesel
Há pessoas que sentem raiva da própria mãe — e, ainda assim, a amam.
Outras sonham com o pai mesmo depois de anos de silêncio, abandono ou violência.
Há quem ame alguém que também foi o algoz.
Quem carregue no peito as marcas de um casamento destrutivo, e ainda assim se lembre do cheiro bom de um domingo qualquer.
Quem odeie… e ame.
Ao mesmo tempo.
No mesmo corpo.
No mesmo tempo interno.
Essa não é uma contradição — é uma estrutura psíquica comum.
É a face invisível da ambivalência.
Quando o ódio nasce do amor ferido
Na psicanálise, amor e ódio não são opostos — são irmãos.
Ambos exigem investimento afetivo, ambos revelam a importância do outro na vida psíquica.
Não se odeia o insignificante.
O ódio mais profundo costuma brotar justamente de onde um dia houve abrigo, sonho, confiança.
É por isso que o ódio pelo pai negligente, pela mãe cruel, pelo parceiro humilhante — dói mais do que o desprezo por um estranho.
Ele sangra em camadas.
Ambivalência: amar quem também feriu
Desde muito cedo, aprendemos a amar quem cuida — mesmo que esse cuidado venha misturado com dor.
O bebê ama o seio que alimenta, mas também se desespera quando ele falta.
A mãe que consola também pode ignorar.
O pai que protege também pode ferir.
A criança não entende a complexidade desses afetos.
Ela internaliza a confusão.
E esse modelo emocional primitivo segue dentro de muitos adultos:
amar quem também machuca. Odiar quem também amou.
Essa é a ambivalência — e ela não é disfunção. Ela é humana.
O parceiro narcisista, o pai ausente, a mãe perversa
Há histórias onde o afeto se mistura à manipulação.
Onde o amor é moeda de troca, a presença é chantagem, o toque vem seguido de ferida.
São relações marcadas por desequilíbrio de poder, gaslighting, humilhação sutil ou brutal.
O ódio, nesse caso, não é exagero — é resposta.
É grito legítimo.
É defesa contra a destruição do eu.
A psicanálise entende esse ódio como uma forma de preservar a integridade psíquica.
Ele aparece quando a alma está cansada de apanhar em silêncio.
O que a psicanálise escuta quando o ódio fala
Melanie Klein nos ajuda a compreender: o sujeito dividido precisa reconhecer dentro de si tanto o amor quanto a raiva.
Donald Winnicott vai além: ele diz que amadurecer é ser capaz de odiar alguém e ainda assim manter o vínculo interno com esse outro, sem colapsar.
O problema não está em sentir ódio — mas em não reconhecê-lo.
Reprimir o ódio leva ao ressentimento, à doença, à repetição.
Reconhecê-lo, escutá-lo e integrá-lo — leva à libertação.
Ressentimento não é elaboração
Ressentir é repetir sem curar.
É ruminar a dor.
É reviver o abandono, a traição, a violência — dia após dia, sem saída simbólica.
Elaborar o ódio, por outro lado, é um ato psíquico de coragem.
É dizer: “Isso me destruiu. Mas eu me reconstruo.”
É recusar-se a repetir nos próprios filhos aquilo que feriu na infância.
É sair do lugar de vítima para o lugar de alguém que atravessa.
O ódio também liberta
Nem todo ódio precisa durar.
Mas quando ele é negado ou demonizado, ele apodrece por dentro.
O ódio que é reconhecido, nomeado, escutado — pode ser transformado.
Pode virar clareza.
Pode virar limite.
Pode virar silêncio em paz.
Porque o ódio, por mais sombrio que pareça, às vezes é só o amor dizendo:
“Eu não merecia isso. E ainda assim… me importo.”
Epílogo: a ferida que não nos define
Muitos de nós odiaram.
Ou ainda odeiam.
E não há culpa nisso.
O que há é travessia.
Nem todo amor precisa ser preservado.
Nem todo ódio precisa ser alimentado.
Mas ambos, quando reconhecidos, nos revelam inteiros.
Somos feitos de luz e sombra, de vínculo e ruptura, de saudade e revolta.
E talvez amar com verdade seja isso:
ver tudo, sentir tudo,
escolher o que seguimos levando.
E seguir.