Sônia Lupion Ortega Wada
“Coragem é agir com o coração.”
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Quando  Amar também Machuca

 

 

 

Epígrafes

 

 

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu:

tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.”

— Eclesiastes 3:1,8

 

“O contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.”

— Elie Wiesel

 

 

 

Há pessoas que sentem raiva da própria mãe — e, ainda assim, a amam.

Outras sonham com o pai mesmo depois de anos de silêncio, abandono ou violência.

Há quem ame alguém que também foi o algoz.

Quem carregue no peito as marcas de um casamento destrutivo, e ainda assim se lembre do cheiro bom de um domingo qualquer.

Quem odeie… e ame.

Ao mesmo tempo.

No mesmo corpo.

No mesmo tempo interno.

 

Essa não é uma contradição — é uma estrutura psíquica comum.

É a face invisível da ambivalência.

 

 

Quando o ódio nasce do amor ferido

 

 

Na psicanálise, amor e ódio não são opostos — são irmãos.

Ambos exigem investimento afetivo, ambos revelam a importância do outro na vida psíquica.

Não se odeia o insignificante.

O ódio mais profundo costuma brotar justamente de onde um dia houve abrigo, sonho, confiança.

 

É por isso que o ódio pelo pai negligente, pela mãe cruel, pelo parceiro humilhante — dói mais do que o desprezo por um estranho.

Ele sangra em camadas.

 

 

Ambivalência: amar quem também feriu

 

 

Desde muito cedo, aprendemos a amar quem cuida — mesmo que esse cuidado venha misturado com dor.

O bebê ama o seio que alimenta, mas também se desespera quando ele falta.

A mãe que consola também pode ignorar.

O pai que protege também pode ferir.

 

A criança não entende a complexidade desses afetos.

Ela internaliza a confusão.

E esse modelo emocional primitivo segue dentro de muitos adultos:

amar quem também machuca. Odiar quem também amou.

 

Essa é a ambivalência — e ela não é disfunção. Ela é humana.

 

 

O parceiro narcisista, o pai ausente, a mãe perversa

 

 

Há histórias onde o afeto se mistura à manipulação.

Onde o amor é moeda de troca, a presença é chantagem, o toque vem seguido de ferida.

São relações marcadas por desequilíbrio de poder, gaslighting, humilhação sutil ou brutal.

 

O ódio, nesse caso, não é exagero — é resposta.

É grito legítimo.

É defesa contra a destruição do eu.

 

A psicanálise entende esse ódio como uma forma de preservar a integridade psíquica.

Ele aparece quando a alma está cansada de apanhar em silêncio.

 

 

O que a psicanálise escuta quando o ódio fala

 

 

Melanie Klein nos ajuda a compreender: o sujeito dividido precisa reconhecer dentro de si tanto o amor quanto a raiva.

Donald Winnicott vai além: ele diz que amadurecer é ser capaz de odiar alguém e ainda assim manter o vínculo interno com esse outro, sem colapsar.

 

O problema não está em sentir ódio — mas em não reconhecê-lo.

Reprimir o ódio leva ao ressentimento, à doença, à repetição.

Reconhecê-lo, escutá-lo e integrá-lo — leva à libertação.

 

 

Ressentimento não é elaboração

 

 

Ressentir é repetir sem curar.

É ruminar a dor.

É reviver o abandono, a traição, a violência — dia após dia, sem saída simbólica.

 

Elaborar o ódio, por outro lado, é um ato psíquico de coragem.

É dizer: “Isso me destruiu. Mas eu me reconstruo.”

É recusar-se a repetir nos próprios filhos aquilo que feriu na infância.

É sair do lugar de vítima para o lugar de alguém que atravessa.

 

 

O ódio também liberta

 

 

Nem todo ódio precisa durar.

Mas quando ele é negado ou demonizado, ele apodrece por dentro.

 

O ódio que é reconhecido, nomeado, escutado — pode ser transformado.

Pode virar clareza.

Pode virar limite.

Pode virar silêncio em paz.

 

Porque o ódio, por mais sombrio que pareça, às vezes é só o amor dizendo:

 

“Eu não merecia isso. E ainda assim… me importo.”

 

 

Epílogo: a ferida que não nos define

 

 

Muitos de nós odiaram.

Ou ainda odeiam.

E não há culpa nisso.

 

O que há é travessia.

 

Nem todo amor precisa ser preservado.

Nem todo ódio precisa ser alimentado.

Mas ambos, quando reconhecidos, nos revelam inteiros.

 

Somos feitos de luz e sombra, de vínculo e ruptura, de saudade e revolta.

E talvez amar com verdade seja isso:

ver tudo, sentir tudo,

escolher o que seguimos levando.

E seguir.

Sonia Lupion Ortega Wada
Enviado por Sonia Lupion Ortega Wada em 05/08/2025
Alterado em 06/08/2025
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